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Cão pirata

Não sei em qual ocasião Zico deu mais sorte na vida. Se ao contrair a doença do carrapato após ser devolvido da adoção, ou se na vez em que fugiu do nosso convívio e perdeu um dos olhos.


Era uma tarde de quinta-feira quando fomos à Associação de Bichos Abandonados, no Farol de São Thomé, onde moramos. Maria, sob a autoridade de seus nove anos, não parava de mastigar os próprios pensamentos: por que foram abandonados?, qual raça?, qual cor?, qual nome?, quando, como, por que meu Deus do céu, ela pergunta tudo.


– Eu também nunca fiz isso antes – Foi tudo o que pude responder. – Mas tenho a impressão de que é ele quem vai nos escolher.


E foi mais ou menos o que aconteceu. Logo na entrada, um animalzinho mambembe escapou pelas grades, passou por entre as pernas de todos nós e se evaporou no matagal em frente. Saímos em disparada e só encontramos o bicho, que era todo preto, graças às patinhas e ao peito, brancos como dentes limpos. Parecia vestido para um casamento. Acho que ele usou todas as forças nessa escapada, pois ao pegarmos no colo, era possível contar os ossos da costela. E ele parecia pedir para ser adotado. Logo se aconchegou nos braços de Maria, apoiou a cabecinha e quase dormiu. “Olha como ele é carinhoso!”, ela disse.


– Ah, vocês gostaram desse? Ele está muito doente, tadinho – informou a veterinária, esclarecendo que a ternura, no caso, era fraqueza.


Aí deu-se a primeira grande sorte do bicho. Zico tinha acabado de ser devolvido, após uma tentativa frustrada de adoção. Depois de uma semana, a dona descobriu não ter condições de cuidar do animal. Suspeito que suas bagunças motivaram a devolução, mas o fato foi que, nesse período, houve uma epidemia da doença do carrapato na associação. Vários haviam morrido, e pelo visto, Zico era o próximo da fila. “Vocês podem levar, mas olha, criança se apega muito, né. E ele pode não resistir…”, alertou a veterinária.


Àquela altura, porém, não havia jeito. Para Maria, pior do que encarar a morte do animal seria simplesmente descartá-lo, como maçã estragada. Sua preocupação era outra. “Qual o nome?, qual o nome?”, insistia. “Olha, ele é muito habilidoso, meteu por entre as pernas igual fazia o Zico no Flamengo… Êpa, por que não Zico?”. Ela concordou, observando: “Pode ser, até porque ele tá todo zicado, né…”.


À base de angu e frango ralado, o vira-latinha se recuperou – até demais, no caso. Perdemos um sofá para suas dentadas, além de dezenas de chinelos, me obrigando a escondê-los em cima do armário. A cada novo brinquedo, eu ameaçava. “Por isso as pessoas devolvem você!”. Ele, com a língua de fora, parecia debochar.


Embora travesso, os traumas da infância eram evidentes. O bicho tinha medo até de barata. Daí a surpresa na festa do pijama que Maria organizou com as amiguinhas lá em casa. Durante um desentendimento, Zico tomou as dores de Maria e chegou a rosnar para uma das meninas. Acho que ali ele aprendeu a latir, daí se empolgou e resolveu treinar com o jardineiro, que levou logo dois pontos no calcanhar. Antes estropiado, o animalzinho agora era metido a valente e ganhou os apelidos de “Mito”, “Necrotério” e “Apocalipse”.


Quando não caçava jardineiros e chinelos, Zico adorava ir à praia, que fica a dois quarteirões de casa. Era meu treinador. Enquanto eu corria, ele vinha atrás mordiscando a bunda, me obrigando a ir mais rápido. Um dia, o mar estava de ressaca e ele não gostou do barulho. Começou a rosnar para o oceano, que o provocava com o ir-e-vir das ondas. Numa dessas, quando as águas se recolhiam, ele saiu irritado, avançou contra as águas e deu um salto. Levou um caixote, mas assim aprendeu a nadar, no peito e na raça, digamos assim.


Até que veio o dia do aniversário de 17 anos de Maria. Fizemos festa em casa, e num desses entra-e-sai de convidados, alguém deixou o portão aberto. Nem sei dizer quanto tempo se passou desde que Zico fugiu. Corremos todos os cômodos, embaixo da cama, dentro do armário, mas nada. Foi como perder um filho no shopping. Rodamos pela praia, padaria, açougue, mas ninguém sabia. Nunca mais o vimos. Meses depois, Maria passou para a faculdade em outra cidade, e a ausência de nenhum filho em casa apertou ainda mais. As coisas dele continuaram lá, intocadas, como se a qualquer momento fosse aparecer.


Passaram-se uns dois anos quando, num verão, Maria veio passar um tempo conosco. Faríamos uma peixada e saí cedo em busca de Pargo, peixe preferido dela, mas não encontrei. Fui até outro peixeiro, Seu Nivado, um pouco mais distante do centro. Estava no balcão enquanto ele limpava os peixes quando um cachorro começou a pular nas minhas costas, quase alcançando a nuca, e chorando e latindo e rodopiando alucinadamente. Era ele. Zico.


Nivaldo o encontrara mancando e com um dos olhos sangrando. Parecia ter sido atropelado, ou maltratado. Por fim, virara pescador-assistente. Em alto-mar, ajudava até a tirar o peixe do anzol, prendendo-o com os dentes. Diante do novo serviço e sem uma das vistas, como se usasse um tapa-olho, Zico virou Pirata. Nivaldo contava com olhos iluminados. Depois, escureceu. Pensamos: e agora? Quem ficaria com ele? Não seria justo pegá-lo assim, pois o cachorro também se afeiçoara ao novo dono. Saí com um embrulho na garganta sem nem lembrar de levar o peixe. Ainda ouvi Zico chorando baixinho.


À tarde, Nivaldo apareceu lá em casa. Junto dele, o Pargo esquecido e o cão perdido. Comemoramos como se não houvesse amanhã, exceto o jardineiro, não muito satisfeito. Mas, no dia seguinte, bem cedo, Zico, ou Pirata, já tinha desaparecido de novo. Entendi que ele tinha compromisso. E, antes de sair para o trabalho, deixei os chinelos em frente ao portão.

* Conto infanto-juvenil

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