Médicos se ausentam do serviço público com atestados enquanto viajam e praticam esportes
Levantamento da Inter TV mostra que número de médicos com atestado aumentou 43,7% no ano passado em Campos dos Goytacazes (RJ). Principais ausências são pediatras e clínicos gerais.
Uma reportagem especial denunciou o aumento do número de médicos que se ausentaram com atestados em hospitais de Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, mas que viajaram, praticaram esportes e até trabalharam em outros locais durante o atestado.
O levantamento foi produzido pelo RJ2 da Inter TV Planície nos últimos dois meses a partir de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e revelou uma grande quantidade de médicos apresentando atestados.
Os atestados são o motivo da ausência de 207 dos 1.259 médicos concursados no ano passado. O número representa 16,4% do total de médicos. Os afastamentos aumentaram 43,7% com relação a 2018.
Nos últimos dois anos, 866 atestados foram apresentados, maior até do que a quantidade de dias nos respectivos anos. As principais especialidades ausentes foram pediatras (158) e clínicos gerais (123).
Além de afetar diretamente nos cofres públicos, os afastamentos prejudicam também os pacientes que precisam de atendimento. Há três meses, Thaís tenta levar o filho de sete meses ao pediatra.
"Não tem (médico)... E às vezes o medicamento que passa, não se dá bem. Então a gente sente falta do pediatra dele mesmo, né, do atendimento normal", disse a autônoma Thaís Cabral.
A falta de médicos é um problema que se repete em várias unidades de saúde de Campos, apesar da cidade estar acima dos padrões internacionais quanto à quantidade de doutores. A Organização das Nações Unidas (ONU) recomenda um médico para cada mil habitantes. Campos tem três vezes mais.
A dona de casa Daniele também sofreu com a falta de médicos. Ela conta que lutou para conseguir uma consulta para o filho mas, quando conseguiu, encontrou problemas na estrutura da unidade.
"Ultimamente não estava tendo médico. Se pra eles está ruim, imagina pra quem vai consultar? Não tem um ventilador funcionando, e quando está aquele sol quente, tem que ficar aqui fora pegando uma fresca esperando o médico chegar pra poder entrar", disse Daniele dos Santos.
As condições e o excesso de trabalho podem ser algumas das razões para tantos médicos doentes. Mas o sindicato da categoria se recusou a participar de uma entrevista, e o município não informa os motivos dos atestados por razões de privacidade.
Sem as respostas dos órgãos competentes, a reportagem da Inter TV constatou diversos indícios de excesso.
Um médico lotado na UPH São José apresentou atestado no dia 2 de julho de 2018 mas, após duas semanas, estava em um curso em Araçatuba, no interior de São Paulo. Nos cinco meses em que ficou ausente, o médico ainda participou de um congresso no Rio Grande do Sul, trabalhou em um hospital de Itaperuna e se dedicou ao jiu-jitsu.
Na mesma UPH São José, o aposentado Antônio Célio não conseguia atendimento depois de um médico faltar a uma consulta que estava marcada há meses.
"Médico não vem e o povo continua vulnerável. Eles fazem lá o juramento deles, mas eles não cumprem com esse juramento", disse o aposentado.
Outro caso é o de uma pediatra que fez uma postagem nas redes sociais com a hashtag "Médicos por amor". Ela pediu dispensa por 60 dias em 25 de maio do ano passado, mas no dia seguinte estava em uma aula de mestrado em Cabo Frio. O afastamento dela custou R$ 41.412,14, em salários, aos cofres públicos.
Desde então, a mesma médica apresentou três atestados consecutivos. Os atestados não a impediram de continuar trabalhando em um consultório particular e em uma universidade, ambos em Itaperuna, além de assistir a jogos do Flamengo e ir a diversos restaurantes.
Uma outra pediatra, do Hospital Ferreira Machado (HFM), maior emergência do Norte e Noroeste do Rio, foi a profissional que ficou mais tempo afastada. A última vez que ela deu expediente foi há quase um ano.
A ausência dela começou em 18 de março do ano passado e, desde então, apresentou seis atestados de 60 dias, mantendo assim o salário de R$ 7.574,99 e um custo acumulado de R$ 75.749,9 aos cofres públicos.
Neste ano, os atestados continuam. Dezenove médicos adoeceram e se afastaram entre as festas de fim de ano e meados de janeiro.
Um cirurgião do Hospital Geral de Guarus (HGG) entrou de atestado em abril do ano passado e só retornou por volta do dia 22 de fevereiro deste ano. Dez dias antes do fim da licença, ele atendia normalmente em seu consultório particular. A reportagem procurou uma consulta no consultório particular e foi informada pela secretária que a consulta custava R$ 250 e o médico não atendia pelo SUS.
Nas redes sociais, o doutor curtiu e compartilhou assuntos como críticas políticas e à saúde pública de Campos, além de mensagens de orgulho à profissão que diziam que "ser médico é uma dádiva de Deus". Em uma página contra o antigo programa Mais Médicos do Governo Federal, o médico criticava pacientes que supostamente vão aos hospitais apenas para pegar atestados médicos em épocas como o Carnaval.
Para a autônoma Vivian dos Santos, a garantia do cargo tem influência sobre este tipo de ação.
"Na maioria das vezes eles fazem isso porque são concursados. E eles sabem que não vão ser mandados embora. Porque se fosse uma pessoa que realmente precisasse, que não tivesse esses benefícios, eles não faltariam, não pediriam licença, atestado, não teria nada disso - disse a autônoma Vivian dos Santos.
A Justiça diz que apresentar atestado falso é crime de falsidade ideológica, com pena de um a cinco anos de prisão. O médico que emitir o atestado falso também pode pegar de um mês a um ano de cadeia.
A Inter TV procurou o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) e a Prefeitura de Campos para pedir um posicionamento sobre o assunto.
O Cremerj informou, por meio de nota, que irá apurar os fatos.
A Prefeitura de Campos informou que se for comprovada qualquer irregularidade, será aberto um inquérito administrativo contra o servidor e pode resultar até na exoneração do servidor.
O município acrescentou ainda que o PreviCampos, responsável por financiar os servidores ausentes do serviço, realiza perícias para avaliar a emissão dos atestados. E acrescentou que a Prefeitura vem criando mecanismos de controle, com a implementação do ponto biométrico.