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O Anti-Tomorrowland

 

Yesterdayland, um dos menores festivais do mundo. Há 10 anos transformando os jardins de uma casa num Woodstoélgicack perdido no interior da Bélgica

 

 

 

No norte da Bélgica, o Tomorrowland fazia jus à fama de maior festival de música eletrônica do mundo, incluindo aí toda horda de insanidade e filas intermináveis a que tem direito. Já no Yesterdeyland, que acontecia no mesmo fim de semana no sul do país, prevalecia mesmo a senilidade. Filas, então, nunca devem ter existido em Longueville, cidadela-sede do festival especializado em bandas covers. Lá, pode-se afirmar, roqueiro bom é roqueiro morto.

 

 

Para chegar àquele que é um dos menores festivais do mundo, eu e mais dois amigos atravessamos o platô belga durante uma hora de carro. Apenas cerca de 500 pessoas vivem em Longueville, que se resume a um punhado de casas cercadas por muitas vacas e, na ocasião, alguns velhos barbudos montados em caminhonetes e Harley-Davidson. Felipe Mota, companheiro de jornada, resumiu bem nossa primeira impressão:

 

 

– Parece uma convenção de camponeses idosos...

 

 

– É melhor a gente nem dizer que é médico – ponderou o terceiro elemento, Alexandre Lanconi, o Borrado. – Ou vamos passar o festival dando consulta.

 

 

– Sem falar que vão querer consumir todas as nossas drogas – concordei, preocupado com o carregamento de Omeprazol.

 

 

Tanta “expectativa” não era à toa, afinal, chegar lá foi menos difícil do que encontrar uma cidade ativa. Durante o verão, em julho, os moradores têm um ritual sagrado de migração, talvez irritados com tanta tranquilidade nos outros 11 meses do ano. Alheios às premências capitalistas, os comerciantes simplesmente baixam as portas e penduram um comunicado informando sobre as férias, de modo que o vilarejo ganha contornos ainda mais desolados. Poucos são os incautos atraídos por atrações turísticas como o órgão de uma igreja, uma coleção de relógios do século 17 ou uma festa de louvor ao passado “famosa” pela alcunha de Yesterdayland, oficialmente chamada de Folestival – junção de palavras em francês que significam “verão louco”.

 

 

Diante das citadas proporções, o festival até conta com uma estrutura, vá lá, avantajada. O terreno equivalente a meio campo de futebol é cercado por barracas que vendem pão com linguiça e a deliciosa cerveja Belle de Longueville, feita por um produtor local especialmente para a ocasião. O palco principal fica no fim da área, mas há ainda um palco menor e coberto na outra extremidade, diante dos fundos da casa do organizador, Jean-Marc Deleuze. Perguntei a um segurança, que na verdade era um comerciante de férias, quem era Jean-Marc.

 

 

– É o jardineiro! – respondeu, entremeando uma gargalhada.

 

 

A piada trazia uma verdade ancestral. Gerações de Deleuze cuidaram daquele campo desde 1700. Jean-Marc, que nas horas vagas também é gerente da gráfica do Parlamento Europeu, viveu todos os seus 54 anos ali. Com pouco mais de 1,60 de altura, sorriso largo e fácil, ele apareceu com uma tiara vermelha adornada com chifrinhos satânicos, feito um jovem em festa de aniversário. E era esse mesmo o sentimento. Enquanto resolve um problema e outro, ele é abraçado pelos presentes, hospeda os músicos em sua casa e, claro, registra cada momento.

 

 

Quando nos encontramos, ele tinha acabado de receber em sua sala a banda cover oficial do Led Zeppelin, o Letz Zep, que faz mais de 100 shows anualmente mundo afora. Depois de tocarem até em estádios, aquelas 2.500 pessoas no meio da relva foram o menor público de sua carreira. O vocalista Billy Kulke – que é mesmo a cara de Robert Plant, inclusive na presença de palco –, nunca tinha ouvido falar no evento ou em Longueville, mas saiu de lá entusiasmado com “o ambiente fantástico, que conseguiu capturar o espírito de Woodstock”. Para Deleuze, ouvir isso era como ser ovacionado no palco após um riff.

 

 

Emoção semelhante apenas no ano passado, quando recebeu os primeiros astros de rock originais: o Slades, banda britânica que fez sucesso nos anos 60 com o single “You better run”. Nas outras oito das nove edições, o festival alcançou sua capacidade máxima de 2.500 pessoas, mas com o Slades houve uma superlotação de 2.800. Grande parte porque Deleuze abriu os portões a dezenas de convidados. Mais do que altruísmo, a motivação foi um trauma de infância.

 

 

– Quando a banda fez seu primeiro show na Bélgica, em 1971, eu já era um grande fã, mas tinha apenas 12 anos e meus pais não permitiram que eu fosse. Você consegue imaginar minha emoção de, 40 anos depois, receber esses caras na minha mesa de jantar? Foi mágico!– , empolga-se.

 

 

Em vez de maconha, remédio para pressão

 

 

Na última edição, a casa-camarote também recebeu, além dos ingleses do Letz Zep, os belgas do High Voltage, covers do AC/DC há quase 20 anos, cuja apresentação teve até efeitos especiais de labaredas de fogo durante a execução do clássico “Hell ain't a bad place to be”. Também passaram por lá artistas conterrâneos como Bob Doug, responsável por um excelente blues-rock; a resplandecente Typh Barrow, cuja beleza vocal – e também a física – angariou milhões de acessos no YouTube; e dois participantes do “The Voice” regional, programa que é febre em qualquer país europeu.

 

 

Nada disso seria possível, obviamente, se a senhora Deleuze também não adorasse a farra, assim como seus filhos de 31, 22 e 20 anos. Todos eles, ao lado de um exército de amigos, assumem voluntariamente alguma função na organização e durante a festa. Coline, a filha do meio, por exemplo, recruta amigos para trabalhar no bar. A turma se destacava em meio ao público predominantemente acima dos 50 anos, mas dizia até preferir o festival do passado ao do futuro.

 

 

– É como se fizéssemos uma grande festa em casa, e afinal, é isso! –, conta Coline.

 

 

Como seu pai não conseguia ficar mais do que 10 minutos numa roda sem ser arrastado para outra, o jeito era conversar com a Belle de Longueville. Nossa empolgação começou a chamar atenção porque, afinal, éramos os únicos a nos mexer. O público só se manifestou quando o guitarrista do High Voltage, Francis Crouse, no papel de Angus Yong, começou a tirar a roupa até ficar de ceroula.

 

 

Verdade que, àquela altura, nós também éramos atrações na festa. “Por que diabos esses três  vieram de um fim do mundo para outro?”, “Como souberam da nossa existência?”, eram o que todos perguntavam. Fomos brindados com quantidades descomunais e gratuitas da Belle de Longueville. Desafiados numa disputa pueril sobre quem bebia mais rápido, perdemos de uns sete a um – Borrado, inclusive, perderia o pão com linguiça ingerido horas antes. Pouco depois, um senhor sacou um remédio para pressão e sorveu com vigorosos goles de cerveja. Foi a droga mais pesada que vimos por lá, e me senti um egoísta por não compartilhar nem um Omeprazol.

 

 

Acolhimento semelhante também devem ter sentido grupos de holandeses, franceses e até um maluco da Nova Zelândia que já caíram por lá. Montado em sua bicicleta, o jovem neo-zelandês tentava dar a volta ao mundo até se perder em Longueville, justamente no dia do Yesterdayland. Acabou, claro, hospedado por Deleuze. Gostou tanto que, na edição seguinte, voltou com a mulher e um punhado de amigos.

 

 

Grama de Woodstock em Longueville

 

 

Receber visitas, afinal, é um hábito presente nas origens do evento. Nos últimos 25 anos, durante todo feriado nacional de julho, Jean-Marc e um grupo de amigos se reuniram em torno da churrasqueira e de sua coleção de discos. Gastavam o dia inteiro ali, estirados no gramado, envoltos naquela paisagem bucólica sob a trilha sonora dos anos 60. Sua bíblia era o célebre “Dark side of the moon”, de Pink Floyd, que ganhou de presente na primeira comunhão, quando tinha 11 anos. Praticamente um chamado.

 

 

Com a chegada das esposas e o nascimento dos filhos, tornou-se um encontro de famílias nostálgicas do bom e moribundo rock'n'roll – mas, até as crianças serem coagidas pelos festivais de música eletrônica. Era 2005 quando a Bélgica se tornou o berço dos eventos do tipo, incluindo o maior de todos, Tomorrowland, que acontece a 70 quilômetros dali. Após tantos anos de boa música, criando os filhos sob a brisa de um micro Woodstock, os pais não podiam simplesmente fechar os olhos e pedir perdão, Senhor, pois eles não sabem o que ouvem.

 

 

O primeiro Yesterdayland foi um sucesso estrondoso, levando-se em conta que o público era equivalente a 60% da população local, ou 300 pessoas. Crianças e adultos chegaram com roupas da década de 70 para ouvir o Rolling Bottles, banda cover dos Rolling Stones protagonizada por Jean-Paul Lauvaux, morador de uma cidade vizinha que se tornaria co-organizador do evento. A banda era um projeto de adolescente de Lauvaux, e o Yesterdayland foi a oportunidade de fazer um revival – dessa vez, tendo seu filho na guitarra.

 

 

– O Rolling Bottles durou pouco tempo, até o dia em que um vizinho começou a jogar pedras na janela. Nós não sabíamos que tocávamos tão mal –, conta Lauvaux. – Mas o sonho ficou trancado no porão e pudemos resgata-lo quando meu filho cresceu. Hoje tocamos muito esporadicamente, mas o festival cumpre a função de me manter envolvido com o mundo do rock. É uma emoção parecida com a de estar no palco.

 

 

Outro grande reforço na organização do evento foi Marc Ysayer, famoso radialista local, que ajudou não só divulgando a festa mas também dando uma força na jardinagem. Em 2009, quando esteve em Woodstock celebrando os 40 anos do festival, o radialista traficou um pedaço daquela grama consagrada para replantar nos jardins do Yesterdayland.

 

 

– Um dia, quando formos tão famosos quanto o Woodstock, levaremos um pedaço da grama de Longueville para lá –, brinca Deleuze.

 

 

Logo os empresários da região também apoiaram, de modo que o festival se tornou economicamente sustentável com ingressos a 15 euros e entrou para o calendário cultural da cidade. A despeito das quase 15 horas de música até as duas da manhã, nunca houve reclamação por conta da lei do silêncio. Talvez porque o prefeito da cidade, Luc Decorte, seja vizinho de Deleuze, fã de rock'n'roll e um dos mais ferrenhos apoiadores da festa, na qual investe 10 mil euros – do erário, claro.

 

 

– Os vizinhos são privilegiados com o melhor lugar para ouvir boa música, então nunca houve reclamação –, defendeu o prefeito. – O festival surgiu de uma ideia boba numa noite regada, mas acabou criando uma atmosfera de convívio em torno de diversão, música e boa cerveja.

 

 

Criou também, no caso da família Deleuze, um legado a ser mantido pelos próximos jardineiros de Longueville. Até porque Jean-Marc e sua turma já estão preparando a aposentadoria.

 

– Em algum momento, eu e meus queridos amigos vamos construir uma casa de repouso baseada no princípio sexo (não tanto quanto antes) e drogas (não as mesmas de antes), mas ainda com o mesmo bom e velho rock'n'roll.

 

 

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