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O incrível destino de Alexandre

 

Tínhamos muito medo do destino de Alexandre. Acho que só ele nada temia; não exatamente porque esbanjava coragem, mas sim por transbordar desapego: diante de qualquer adversidade, sua única reação era debochar e tocar uma guitarra imaginária. Tal momice o distinguia melhor do que as próprias digitais. Bastava uma frase mais espirituosa para ele envergar o corpo, revirar os olhos e sacolejar os dedos junto à barriga, simulando acordes de um jeito tão genuinamente ingênuo que a gente chegava a ouvir o riff. O trejeito era repetido até quando a vida desafinava feio, como na vez em foi demitido logo após engravidar a namorada. Ele se tornara um dos melhores vendedores de plano de saúde da região, a despeito de controversos subterfúgios que habilitavam velhinhos a comprarem o serviço a preço de criança.

 

 

Foi seu primeiro e único emprego na vida, embora na época já fosse formado em Jornalismo e aluno de Publicidade, curso que abandonou a seis meses do fim. A gente conversava, aconselhava, mas ele nem aí: ria e saía empunhando a guitarrinha imaginária. Aos 30 e poucos anos, morava com a mãe, tinha bolsa de estudo e nenhum dinheiro. Trocava a sala de aula pela cantina, e feito cão danado, vivia por ali, à espreita da xepa. Por várias vezes fuxicou a lixeira, sem qualquer constrangimento. A gente dava esporro, ajudava, mas Alexandre, nada: de boca cheia, saía tocando um solo particular.

 

 

Foi nessa fase do lixo que conheceu a menina. Ela devia ter metade dos seus quase dois metros de altura, mas fora essa diferença, era doidinhazinha como ele. Logo os dois sumiram no mundo, como fazem os apaixonados. “Devem revirando um jantar romântico nas esquinas da Pelinca”, a gente brincava. Um dia, os dois ressurgiram na faculdade – flagrados no banheiro, transando. Deu uma merda danada e a diretora ameaçou expulsá-lo. “Tudo bem, eu nem vou às aulas mesmo!”, respondeu entremeando mais um solo, com direito à namoradinha no contrabaixo.

 

 

Essa mania de guitarra imaginária é uma releitura, eu acho, do filme “Bill & Ted, dois loucos no tempo” – espécie de exterminador do futuro adolescente, produzido exclusivamente, talvez, para a Sessão da Tarde. Nele, os personagens Bill e Ted são assassinados por clones-robôs do futuro, duelam com a Morte, negociam com Deus e retornam triunfantes para salvar o universo. No fim das contas, foi quase isso que Alexandre fez.

 

 

Ele tocava os dias de modo surpreendentemente tradicional, com um emprego formal e a paternidade à espreita, até acontecer a demissão. De repente, aquele futuro funesto que conjecturávamos para ele parecia materializado. Vagava pelas ruas feito doido, solando e sacolejando a cabeça, como se estivesse no palco de um metal da pesada. Mas logo o telefone tocou. Convocado a se explicar ao dono da empresa, Alexandre viu a chance de redenção com Deus e o mundo. Argumentou que aumentar o número de clientes foi vantajoso, que não roubara um centavo sequer e que, porra, o preço era extorsivo mesmo. Acabou recontratado – e como gerente. Está lá até hoje.

 

 

Fora o carro importado e a mesa farta, Alexandre não mudou nada. Continua com a mesma doidinhazinha, e no ano passado tiveram a terceira filha. Tornou-se um paizão, embora inconsequente. Dia desses, seu menino tentou enfiar o dedo na tomada, mas em vez de repreender, ele ponderou: “Filho, se você fizer isso vai levar um choque. Mas é legal pra caramba!”. O moleque se eletrocutou, deu uma gargalhada e dedilhou acordes junto ao pai. Assim Alexandre segue tocando a vida, transformando aquele canto torto numa pueril melodia.

 

 

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Contos | Veja também "Estação Lunar"

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