Toda noite é urgente
Repórter passa uma noite no Souza Aguiar, maior emergência da América Latina, em meio a rotina de baleados, quebra-quebras, pacientes esquecidos e CTI cercado por lixo
A consultora de negócios Jéssica do Carmo, de 21 anos, sentiu-se mal e buscou atendimento no Hospital Municipal Souza Aguiar na noite de sexta-feira, quando o Jornal do Brasil acompanhava o trabalho incessante dos médicos e o martírio dos pacientes. Diante de uma fila com 11 pessoas que se amontoavam na Sala das Mulheres (a pré-enfermaria da unidade), Jéssica desmaiou. A amiga que a acompanhava saiu pelos corredores aos berros em busca de um médico, até chegar à sala de politrauma. Em vão.
– Eu só cuido da cabeça –, explicou o doutor, aos berros. – Se não está satisfeita, vá para outro hospital!.
Jéssica deveria aguardar desmaiada. Afinal, o único médico que ali estava – responsável por mais de 30 pacientes – fora socorrer uma paciente que acabara de sofrer um enfarte. A situação piorou com a chegada de duas vítimas de um confronto no Morro do Pinto, no Centro do Rio. Isso, em apenas 10 minutos de mais um plantão encarado por três médicos, cúmplices de uma rotina que reservaria ainda pacientes quebrando a nova emergência e até o Centro de Terapia Intensiva (CTI) entrincheirado por lixo. Naquela noite, a maior emergência da América Latina completava 100 anos de histórias como esta.
No Souza Aguiar, éramos sobreviventes do destino mais nervoso do Rio de Janeiro, segunda cidade mais violenta do país. Por lá passam diariamente cerca de 800 enfermos – ou um paciente a cada minuto e meio. Desses, segundo os médicos, cerca de 100 pessoas morrem por mês – ou três por dia. Naquela primeira sexta-feira do ano foi a vez de Edson Guedes de Souza, de 16 anos, baleado no Morro do Pinto durante uma incursão do 5º BPM (Praça da Harmonia). Junto dele, Walney Martins Bahia, de 14, também foi socorrido, mas sobreviveu.
Era meia-noite quando mais de 20 moradores da comunidade foram ao hospital protestar contra a ação da PM. O grito de “assassinos” ecoou por todo o hospital, principalmente nas salas das mulheres e dos homens, cujas janelas ficam de frente para o pátio e estão sempre abertas por falta de ar-condicionado. Na fila de espera estava Douglas Arcanjo, de 24 anos, outra vítima de tiro – no caso, dois anos antes. Ele aguardava a sétima cirurgia após sofrer uma tentativa de assalto. Naquela sexta, Douglas chegou à unidade às 22h e foi embora por volta das 2h sem conseguir atendimento.
– Tenho de fazer uma nova cirurgia e não sei se minha situação é grave, mas o médico teve de sair por causa dos novos baleados – contou. – Aqui é bom, o que atrapalha é a burocracia. Hoje, tendo conhecimento, até consigo ser atendido rápido. Mas hoje não dei sorte.
Enquanto ele aguardava, um aparelho de raio-x permanecia quebrado no corredor do sétimo andar. No quarto piso, um paciente passou a noite deitado no chão da enfermaria. No terceiro, na entrada do CTI, um doente padecia na maca ao lado de sacolas de lixo – algumas abertas – que se acumulavam próximo à porta. No segundo, uma enfermeira e um paciente ficaram presos no elevador. E todos passam incólumes, como se toda tragédia fizesse parte daquela rotina.
– Esse elevador vive quebrado – contou um médico. – Outro dia, uma enfermeira ficou presa com uma criança e, ao tentarem sair, o menino quebrou a perna. E o pior: não havia ortopedista.
Há dois meses, uma nova emergência foi oficialmente inaugurada, com direito à presença do secretário municipal de Saúde, Jacob Kligerman. Até hoje, porém, só o esgoto entrou na unidade, graças a uma infiltração no teto. As obras, que deveriam ter ficado prontas há três anos, custaram R$ 5,7 milhões.
Apenas o Serviço de Pronto Atendimento funciona – mas, apenas para amontar gente nas salas antigas. Enquanto isso, novas salas de emergência com 22 leitos e novos equipamentos permanecem com tapumes. O motivo, segundo a prefeitura, é uma adaptação no ar-condicionado. A nova previsão é para o mês que vem.
Naquela noite, alguns pacientes não quiseram esperar: um deles quebrou duas portas de vidro da nova emergência e foi parar na 4ª DP (Cidade Nova). Não foi, claro, o primeiro caso a sair do hospital para a delegacia. Em 30 de novembro, Maria Luiza Barbosa, 32 anos, mãe de uma menina de um ano, deu entrada na emergência depois de ter sido atropelada e ter parte da coxa decepada. Ela foi medicada e “esquecida” por três dias na Sala das Mulheres, onde desenvolveu uma infecção generalizada. Era tarde quando chegou ao CTI-2, a ex-Unidade de Pacientes Graves, que no ano passado ganhou prêmios internacionais e hoje padece de falta de medicamentos. No prontuário de Luiza, consta apenas a evolução da paciente no dia que chegou, na maca, e que saiu, no caixão.
– Está vendo aquela senhora ali? – , apontou um médico. – Aconteceu a mesma coisa. Não vai sobreviver.
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