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A lenda do ex-alemão

Até aquele dia, ele ainda se chamava Hans Bernstein, era um estudante de Línguas obcecado por futebol e reconhecia-se com 25 anos, todos vividos em Ludwigshafen, cidadela alemã próxima à fronteira belga. Nada disso importaria mais após uma infortunada caminhada pelo Parque da Cidade, em Brasília, horas antes da semi-final entre Brasil e Alemanha pela Copa do Mundo de 2014.


Bernstein fez de tudo para estar ali. De dia era babá de cachorros; depois, varava madrugadas dando aulas online de alemão, inglês e francês – especialmente a brasileiros e portugueses, a fim de se familiarizar com o idioma. Tudo para assistir, in loco, à Copa do Mundo de Futebol. Era capaz de recitar os maiores lances de Garrincha, Zico e Sócrates, além, claro, de Romário e os Ronaldinhos. Em breve – quem sabe naquela Copa? –, Neymar também constaria em seu memorial de gênios. Mesmo assim, não houve alívio quando o craque do Barcelona ficou de fora da partida contra a Alemanha. A “Amarelinha” impunha respeito – ainda mais em casa. Bernstein previa uma tragédia (e teria razão, em certo sentido).


Desembarcou em Brasília para a conexão até Belo Horizonte, onde seria o jogo, trazendo sete dedos em carne viva de tanto carcomer uma unha na outra. Sua sorte – e também seu azar – é que o fascínio pelo Brasil o ajudava a se distrair. No rastro da seleção alemã, havia conhecido Porto Alegre, Rio de Janeiro e três cidades nordestinas, ocasião em que foi conquistado pela culinária local e o jeito manso daquele povo. Daí que, em vez de passar três horas no aeroporto roendo os três dedos que restavam, deixou as malas num guarda-volumes e foi explorar a mítica capital erguida no meio do nada.


Seguiu até o táxi dizendo “comida nordestina, cadê?”. Foi transportado até o Gibão, no Parque da Cidade, onde se refestelou com carne de sol, feijão verde e mandioca, tudo devidamente regado com “aquele ouro líquido”, que era como chamava a manteiga de garrafa. Saiu empanzinado, andando a esmo até se recostar numa das paradas de descanso do parque, de frente a um dos muitos painéis de Athos Bulcão.


Também um skatista decidiu que ali seria um bom lugar para protestar. Ao puxar a primeira perna do “F”, a pichação desenhou um pirata em meio às figuras assimétricas dos azulejos. Bernstein deu uma risota, inclinando a cabeça como um cão desconfiado, quando ouviu um grito. Quase achou que estavam espantando o pichador em vez do ladrão. “Quase” porque logo uma coronhada no lóbulo direito fez o mundo cambalhotar numa profunda escuridão.


Acordou sem saber qual planeta pisava, qual ar respirava. Aos poucos recobrou os sentidos e, como se lhe fosse natural, agradeceu num arrazoado português aos transeuntes que o amparavam. Como numa troca de chip, foi como se a bordoada fizesse o download de um dicionário de português brasileiro. Já a língua materna – e todas as demais – engavetou-se em algum canto obscuro do cérebro, onde também se escondiam seu nome, sua nacionalidade e até as cobranças de falta de Zico.


O ex-alemão levantou-se cambaleante e vasculhou os bolsos em busca de respostas, mas nada encontrou. Caminhou enzumbizado e, entre uma latejada e outra, sentiu um incômodo sob a cueca. Encontrou um pacote com um ingresso e os dizeres: “Brasil X Alemanha. Terça-feira, dia 8 de Julho de 2014, às 17h – Mineirão, Belo Horizonte”. Não fazia ideia do que era aquilo.


Num restaurante mais a frente, viu um cartaz anunciando dose dupla de chopp a cada gol do Brasil naquele dia. Conferia com a data do ingresso. Continuou andando, mas, ainda meio estropiado, sentou-se no gramado próximo ao relógio de sol do parque. Ele já anotava 16h – uma hora antes daquele ingresso estranho que encontrara na virilha. Chamou uma das crianças que se divertiam no monumento e perguntou onde ficava o estádio. O moleque apontou a direção e o ex-alemão seguiu a reta, meio em busca de respostas, meio por não saber aonde ir.


Chegou ao Mané Garrincha quando a bola já rolava no Mineirão. Nem os carcarás cantavam por lá. Vagou pelo entorno até voltar em direção ao Parque da Cidade. No caminho, de vez em quando cruzava com um e outro arrastando chinelos e mirando o chão. Os bares, embora apinhados, pareciam catedrais sibilantes – mas, em vez do padre, ouviu apenas uma voz na TV gritando “virou passeio”. Aproveitou o conforto daquele silêncio e dormiu no gramado antes de o Brasil fazer seu único gol.


Passou o resto dos dias vagando pelo parque, mas logo o branquelo maltrapilho atraiu a atenção (e a comiseração) de funcionários dos estabelecimentos da região. O “gringo de estimação” acabou virando lenda: uns diziam que era simplesmente um vagabundo metido a doido; outros, mais ufanistas, tinham certeza de que o cara veio para a Copa, se apaixonou pelo Brasil e se recusava a voltar para casa. Certo é que, durante as inquirições, ele parecia esquecer o português. Na hora do almoço, circundava sempre pelo Gibão, feito cão vadio, à espreita da xepa de um baião de dois ou, sorte das sortes, uma carne de sol com ouro líquido. À noite, dormia escorado ao relógio de sol até ser despertado pelas 6h a marcar-lhe a testa.


Em recompensa aos auxílios prestados, limpava o monumento solar, varria meios-fios e asseava os murais de Athos Bulcão. Ganhou especial consideração ao retirar o “Fora Neymar” pichado nos mosaicos, embora, sem saber por que, tenha mantido o pirata fortuitamente estilizado. De vez em quando se prostrava ali, diante do azulejo durante horas, como se louvasse um deus pagão, como se na expectativa de que lhe revelasse algo, sem fazer ideia de que ele era, na verdade, o único alemão triste no mundo.





* Conto selecionado para a antologia do Desafio dos Escritores (www.desafiodosescritores.com.br)

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