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A cachorra do general

O primeiro encontro foi num batizado na Paróquia Militar Oratório do Soldado, ali mesmo no Setor Militar Urbano de Brasília. Marcela usava um vestido de recatado, mas era tão impossível esconder tamanhos atributos que, ao deixar a igreja, até o recém-nascido pareceu esbugalhar os olhos. Nem a patente do marido, o general de brigada Michel Almeida de Mello, era capaz de reprimir a lascívia alheia – muito menos a do soldado Nestor Souza, que fazia guarda por lá e só não levou uma advertência porque, num momento como aquele, ninguém reparava nele. Exceto ela.


Marcela Albuquerque Sampaio Gouvêa de Mello é daquelas que não deixa nenhum sobrenome para trás. O “de Mello” foi incorporado aos 25 anos quando se casou com o general, um militar carreirista 30 anos mais velho. Conheceram-se num almoço beneficente, onde o pai dela, também militar, fez questão de convidar o recém-viuvado Michel para a mesa da família. Deu certo. Meses depois subiram ao altar – o mesmo onde ela e Nestor se encontraram. Após 10 anos de casados não tiveram filhos, mas Emmanuelle, uma cocker spaniel espevitada que herdou os sobrenomes e os caviares da família.


E a culpa foi da cachorrinha. Ou era, pelo menos, a justificativa para Dona Marcela sair todas as tardes para passear na Praça dos Cristais, também na zona militar. Ora com idas à joalheria, ora ao cabeleireiro – ela e Emmanuelle, sempre —, certo mesmo era passar por lá. Sabia que Nestor estaria cumprindo expediente, seja como jardineiro ou guarda-poste. Sabia, também, dos riscos daqueles flertes, das armas do general na parede da sala, mas tudo isso mais a excitava do que amedrontava. Com suas largas ancas e os seios a desafiar o horizonte, desfilava com os cabelos loiros e longos a alisar-lhe as costas, de modo que sua voluptuosa presença parecia ser transmitida pelo ar. Nestor tremia, e tanto que sua voz saiu quase involuntariamente.


Começou com um matreiro “boa tarde”, dito de beiço duro para evitar retaliações. Ela respondia com um sorriso acanhado, mas lavado na malvadeza, lançando olhares entre as mechas. Dali circundava os prismas de concreto, aproveitando cada fresta para conferir com mais afinco o soldado – sua pele mulata, seus ombros largos e olhos castanhos claros sempre a encará-la. Ficaram dias nesse balé platônico até ela se acobertar entre as árvores, do lado oposto ao Clube do Exército. Era a hora da caça. Nestor se aproximou e, feito um espião russo, disse meio de lado:


– Eu sei que é loucura, mas não tô aguentando…


– De que… você tá falando? – ela respondeu forçando a altivez, embora percebesse que sua voz trêmula a denunciava e, antes de pensar o que dizer, ele a encarou e disse:


– Eu sei que você quer, é só termos cuidado. Tô de folga amanhã, podemos ir ao motel Monchérri ou…


Marcela nem ouviu o resto. Deu uma bolsada no jovem e saiu, sinceramente aviltada. Não pela ousadia, pois era tudo o que ansiava. Ela se irritou, isso sim, pela proposta de levá-la a um motelzinho barato, feito mulher sem galhardia, sem a estirpe de uma Albuquerque Sampaio Gouvêa de Mello. Já Nestor, em pânico, trancou-se em casa e ficou de arma em punho atrás da porta, à espera da retaliação. O pior, ele pensava, é que ela também o desejava, ah, disso ele tinha certeza. E afinal, como resistir àquela mulher que mais parecia irmã gêmea da atriz Paolla de Oliveira? Ela valia o risco, ele achava, agora sem tanta convicção.


Pelo menos a vingança do general não aconteceu – embora parecesse iminente. No fim de semana, ele e a mulher almoçavam quando o general largou os talheres, deu um petisco a Emmanuelle e, mascando a carne, perguntou:


– O que você tanto faz na Praça dos Cristais?


A cachorra engasgou, enquanto Marcela se arqueou imponente.


– Passeando com Emmanuelle, meu bem… Você sabe que ela morde tudo se ficar muito tempo em casa – respondeu sem corar, enquanto o general ruminava a carne ao ponto de quase fazer espuma.


Passaram-se dois dias até Marcela decidir voltar lá – um pouco para reforçar a desculpa, mas principalmente para rever o soldado. Dessa vez, seria um passeio rápido. A desconfiança do marido atiçou ainda mais sua vontade. Ao passar por Nestor, deixou cair um bilhete. Tinha de ser naquele dia. Dali a pouco. Ele não evitou o sorriso, mas tremeu quando viu que seria na casa dela. Invadiria o quartel do general.


Chegou lá e a encontrou com uma camisola de seda francesa, que ela retirou antes mesmo dele fechar a porta. Ele avançou com uma quase-raiva, agarrando sua bunda, mordendo sua boca e arrastando-a pelos quadris com urgência até a bancada da cozinha, depois ao banheiro, e dali, ainda molhados, para a cama do general, dessa vez mais demorada e violentamente, sussurrando grosserias, marcando seu corpo e penetrando-a com vigor até exorcizar o último trejeito de dondoca pudica. Entretidos assim, nem notaram quando Emmanuelle encontrou a identidade militar de Nestor e fez dela seu novo brinquedo.


Ele pegou no sono durante 10 minutos, o suficiente para acordar assustado, sem saber quanto tempo tinha se passado. Saiu na ponta dos pés, escorando-se nas quinas dos corredores como se invadisse um esconderijo terrorista. Marcela ainda dormia no quarto com um sorriso relaxado. Ele pegou as roupas e saiu às pressas, minutos antes de o general chegar.


Da porta, Michel viu Emmanuelle no tapete da sala com algo na boca. Ele se aproximou e viu o que era. Respirando fundo, afagou a cachorra, pegou o documento e foi até a escrivaninha do escritório. Abriu a gaveta, onde mantinha uma pistola nove milímetros junto a dezenas de outros crachás, e guardou. Já reunia ali todas as repartições do Ministério da Defesa. Pelo menos, ele pensou, não havia o de nenhum maconheiro do Meio Ambiente.

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