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O canto do Carcará

Quando descobriu a chegada do novo mundo, Jacobson vigiava passarinhos na esquina da quermesse de Tonico em Tuparetama, nos confins de Pernambuco. Não por lirismo ou vadiagem, mas por sede e medo. Os arremates do Carcará indicavam dias de chuva, ensinavam os antigos, mas era preciso estar atento ao canto enlarguecido anunciando mau agouro. Numa dessas, o bicho assanhou-se nos fundos da venda e atraiu a atenção de Jacobson para um cartaz da ESOL Engenharia, que convocava mão de obra para a construção da nova capital do Brasil. “Cumpra a profecia de Dom Bosco!”, dizia em letras amostrosas. Aquilo, para um nordestino, era praticamente uma invocação. E ele foi, não sem antes ouvir um gorjeio compassado, feito sino de igreja em dia de funeral.


Aquele ajuntamento empoeirado, aos seus olhos, já trazia a riqueza aventada pelo santo: água e comida, que mesmo racionadas, eram vistas como um banquete. E o melhor: o patrão não era nenhum engravatado metido a besta, mas o próprio Senhor Jesus Cristo, a partir da gerência do Santo Bosco que, desde o século passado, lá do outro lado do mar, previu a construção daquele lugar. Que bicho arretado, o ômi… E agora, quem diria, era ele a dar forma à profecia: Jacobson de Souza, um magricela ao relento, filho de mãe largada, dono de uma alpercata e duas blusas, o responsável pelas primeiras marteladas no novo mundo.


Como tantos dos seus, instalou-se no acampamento dos trabalhadores que viria a ser conhecido como Vila Planalto, entre os palácios do Planalto e da Alvorada. Aos poucos, depois de a capital ganhar corpo, ele ergueu também seu palacete: um pedaço de metro suficiente para um fogareiro e um sossego. O resto vinha com o vento. O problema era quando batia um sudoeste rasgando saudade da sua terra, das andanças pelos sertões e dos amigos que lá deixou, como cantava Luiz Gonzaga.


E foi justo num forró ao som do seu conterrâneo que Jacobson encontrou aconchego. Vanderléia era cobiçada em dezenove acampamentos, mas sucumbiu a um marejado Jacobson em noite anuviada. Nem o santo previu tamanha fortuna, pensava ele, quando tiveram um menino. Às vezes parava, olhava o moleque, mirava a capital e quase planava sobre o próprio orgulho – até os homens tomarem controle da previsão dos céus.


A especulação imobiliária chegou feito tempestade varrendo Jacobson de seu palacete. Foi parar em Candangolândia, lá pros lados de Deus dará. Agarrou muito tronco pra pôr a família nos eixos, mas o lugarejo era um amontoado de pau a pique onde o povo jogava imundice pela janela, formando pântanos de excrementos. Tropeçaria na própria fé quando o garoto, já alcançando os dez anos, teve febre alta. Como o hospital não dava jeito, Jacobson apelou para Dom Bosco. Tinham uma dívida, afinal. Não era possível o santo desmerecer assim dele, logo ele, que pôs concreto na premonição sacra. Ele até gritou, mas ninguém o ouviu. Nem mesmo Vanderléia, que mal enterrara o filho e já se embrenhava em distantes baiões.


E ele engatou na cachaça, dia sim, noite também. Com o vício, foram-se os serviços, vieram os demônios – e um deles, ao encontrá-lo babando sobre o balcão do botequim, zombou de sua condição de marido. Jacobson curou a bebedeira no ódio. De onde estava, catou uma faca e se lançou na goela do infeliz, e dali para as tripas de Vanderléia.


Viram potencial naquilo, e ele começou a ser convocado a tomar satisfação de dívidas alheias. Logo se especializou e trocou o facão pela garrucha, mandando um tanto de gente ao encontro de Dom Bosco. Sua presença anunciava funerais, de modo que o povo passou a lhe chamar de Jacobson Sineiro. Ele gostou tanto que tatuou no pescoço um Carcará carregando um sino sacro, como se exibisse um cartão de visitas. A prática foi copiada por criminosos locais, cada um com um símbolo remetendo às respectivas atividades. Aí foi o erro.


Quando a turma se alvoroçou pelos jardins de Burle Marx, o poder público lembrou daquela gente. A polícia passou a fazer operações diárias – e, quem não era enviado ao encontro do Senhor, era mandado para o xadrez, num rompante investigativo sem precedentes. Quaisquer tatuagens eram tratadas como confissão; o delegado que se virasse com miudezas. Jacobson pegou dez anos de cadeia sem sequer um doutor a lhe aconselhar, muito menos uma rapariga a lhe aconchegar. Seu único alento eram as noites de sono. Sonhava sempre que estava em sua Tuparetama, dessa vez cercada por um verde de arder a vista e uma revoada de Bem-te-vis na quermesse do Tonico, onde ele entrava e encarava o cartaz de convocação do santo até um Carcará comido no satanás berrar na sua cara.


Numa dessas, quem o acordou foi o carcereiro anunciando a liberdade. Passou pelas grades meio modorrento, e dali andou avoado nem Deus sabia para onde. Mas Jacobson, no fundo, sabia seu destino. Caminhou por ruas apoquentadas e demorou a notar que era dia de eleição. Ao passar por uma boca de urna, foi agraciado com o santinho de um candidato: “Para a terra prometida, vote Moisés 67.667”, dizia, logo acima do vaticínio que Dom Bosco fez em 1883. “Brasília será uma riqueza inconcebível!”, repetia. Jacobson, mais que nunca, sabia seu destino.


Dali pegou a reta para o antigo palacete da Vila Planalto, o seu velho palacete, aquele onde sentiu-se iluminado até o progresso lhe escorraçar, até perder seu único filho e ser descartado pela mulher e por todos os santos e só então perceber que, na verdade, nenhum sino jamais dobrou por ele, como, afinal, estava claro ali, em azul neon, na forma da fachada de um apart hotel. Então ele apenas acompanhou os próprios passos.


Pegou a suíte mais humilde, não só pela grana curta, mas para ficar perto do seu antigo quarto. Ligou o gás do banheiro e da cozinha, deitou-se na cama e aguardou. Brasília, que do pó viestes, ao pó voltarás. Ainda deu tempo de ver um Carcará assobiar na janela antes de acender o último cigarro.

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