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O velho e o poço

– Já apareceu?

– Suncê tá com pressa? Tem compromisso amanhã?

– Se tiver um amanhã…

– Então fica de bico murcho ou vaza fora.

– Ela por acaso só aparece se fizer silêncio? Qual é o seu pobrema?

– Pobrema, Mitinga?! O mundo num rebucetê danado e você com indagação de problema?! Sério; pobre da humanidade que tem um imbecil como esperança… A gente merece a extinção, mesmo.

– E você, que fica dia e noite aí, feito um maconheiro na beira-mar, esperando uma luz idiota aparecer no céu?

– Suncê tem ideia melhor?

– Sim, achar a droga da corda, encher o bucho d’água e conseguir mais um tempo de vivência. Muito mais fazível, acha não?

– Suncê é um imbecil que não sabe o que faz.

– E você sabe, Mizifio?! De verdade? A gente aqui necessitado de braço e você aí, de fiscal de estrela cadente?

– Mais respeito com a Mãe de Ouro.

– Mãe de Ouro é o cacete, seu véio varrido! Isso é lenda de minerador, quando ainda havia mina e minerador. Ou você acha mesmo que antigamente uma bola de fogo surgia no céu pra avisar onde estava o ouro?

– E suncê achava mesmo que o mundo ia esfarelar?

– Que seja… Ainda que a porra da Mãe sucedesse agora, aqui, na minha frente: pra que diabos você quer ouro? Vai comprar uma casa?

– Não é ouro que eu espero. Além do mais, essa era só uma das lendas. Diziam também que a bola de fogo virava uma linda senhôra e…

– Ah, entendi. Você quer assistir pornografia nas nuvens… O mundo indo embora e você lavado na safadeza. Velho idiota.

 

– Mizifio…

– Salve.

– Mitinga disse que veio palavrar com você e…

– Mitinga é um imbecil.

– Sim, eu sei. Acontece que a gente realmente tá necessitado de ajuda.

– Acontece que eu estou ocupado.

– Mizifio, por Eubséquio. Não tô pedindo pra você sair fora. Se é isso que quer, ficar atracado na areia, mirando o mar até o mundo ter fim, pois fique. Mas como você é o mais velho que restou, queria ver se aventa uma solução pra mó de achar uma corda. Já fuçamos nos barcos, no farol, no heliporto, e nada.

– E pra que satanases suncê quer uma corda?

– Tem um corpo lá no poço. E não sei se tá sabedor, mas é nosso último poço. Se a gente não tirar o falecido rápido, vai apodrentar, estragar a água e aí…

– Aí já era.

– Já era.

– Quem foi que caiu?

– Esse é outro problema. O Mausoléu, aquele gordo da Dona Xepa.

– Mas como é que o infeliz foi desfalecer assim?

– Sabe Deus… Quer dizer, Ele é que não quer saber mesmo, né.

– É um imbecil.

– Deus?

– Não, Mausoléu. Deus era muito esperto, criou até água de coco.

– Não peguei essa época.

– Azar. Pois eu comecei a acreditar em Deus por causa da água de coco. Era pasmoso como que uma plantinha crescia, crescia, seguia numa crescente até botar uma pedra verde lá no alto. Depois ainda filtrava a água e botava dentro da pedra, mas uma água docinha, cheia de bondades. Aquilo não pode ter surgido assim, das bactérias. Alguém muito criativo inventou isso tudo.

– Pena que esse alguém depois destruiu tudo.

– Tá errado não. Tinha muito imbecil por aí. Cê vê o Mitinga…

– Deixa o Mitinga pra lá e ajuda nós, Mizifio…

– Ajudar em quê?

– As cordas, Mizifio. As cordas…

– Ah… Não faço ideia, jovem… Já procuraram nas casas? Enforcamento tava na moda outro dia…

– Sim, conseguimos algumas assim, uns 10 metros, se tanto. Mas tem um gordo no fundo do poço, né.

– É, vão precisar de uma corda maior.

– E o senhor não se importa?

– E quem se importa?

– Você fala tanto em Deus e não tá nem aí com…

– Shiiiii! Olha! Tá acontecendo…

– …

– Acho que não, hein.

– Foi longe. O que suncê dizia?

– Que você fala tanto em Deus, mas…

– Olha, jovem, eu acredito em coisas invisíveis. O que mais resta? Procurar uma corda, matar a sede, e depois? Prefiro ficar aqui, mareando a saudade.

– Nim quê que ocê acredita?! Na Mãe de Ouro? As bolas de fogo são só paisagem, Mizifio… Como era o sol e a lua. Agora temos um céu prateado e esses relâmpos de brasa. É Deus, ou o Demônio, tentando riscar o fósforo pra acabar com tudo.

– Pode ser. Mas suncê prefere ficar correndo atrás de corda.

– E você prefere assistir de camarote.

– Já disse, eu prefiro é acreditar no invisível. Porque o que era percebedor, o que se olhava, adiantou o quê? Nisso aí, ó… No desapercebido, em nada além de saudade e história. Aliás, já te contei da ilha dos naufragados, que tinha lá no horizonte?

– Sim, umas duzentas vezes. Ficava na reta do farol, e na maré baixa a água batia nas canelas. Que bobice, Mizifio.

– Isso é fato verdadeiríssimo! Sei de vista própria. Era como andar sobre as águas no meio do oceano.

– Tá certo, Fio. Você devia fundar uma igreja própria.

– Nisso eu nunca me fiei. Quando o mundo começou a morrer, as catedrais foram as primeiras a esvaziar, sabia? Aquela boca-de-fumo que até outro dia havia ali na rua do meio, perto do Carlitos, um dia foi uma Universal. O próprio pastor mandou no negócio, só mudou a razão social. E aquela igreja católica lá no Rádio Velho? Logo virou quartel da miliça, depois matadouro… A verdade é que aquele sino nunca dobrou por ninguém.

– Peraí: havia um sino lá?

– Claro, jovem. As igrejas eram assim.

– Velho! A corda! Acorda, velho!

 

– Mizifio…

– Arriégua… Fala, imbecil.

– A gente conseguiu a corda. Mas tá difícil rancar o gordo…

– Foda-se.

– Árri, sempre virado no catiço, hein. Olha, Seu Mizifio, eu matutei muito antes de vir dar palavra, mas decidi decidido mesmo porque, ó, tá tudo acabando… Pra que tanta margura, tanto alvoroçamento, num é mermo? Desculpa a raivice, ômi…

– Tudo bem, imbec… é, Mitinga. Suncê é só meio atrasado no raciocínio.

– Certo. Então, vamos lá ajudar nós…

– Não.

– Larga mão de ser teimoso, ômi! Você não vai achar nada freado aí. Mesmo se a Mãe aparecer você só vai ver isso, ó, monte de nimbulus.

– É nimbus, imbecil. Suncê não consegue deixar de ser imbecil por mais de dois anunciamentos, reparou?

– Que seja! Vamos lá, você conta umas histórias de quando havia mundo, a gente finge que acredita, dá umas… Huh… o que é aquilo?!

O dia clareava quando uma labareda rasgou os céus, primeiro com uma faísca, depois num relâmpago flamejante, alastrando luminescência até onde o mundo fazia a curva e destacando, assim, o contorno do firmamento e a silhueta da ilha dos naufragados.

– Você viu…

– …A ilha! E verde! Tem árvore lá, Mitinga! Será que tem coqueiro?

– Então era isso que você esperava?

– É claro, imbecil! Eu queria lá saber de corda, de poço, de merda nenhuma. Quem tá no fundo do poço é a gente, não o gordo. Suncê queria sobreviver por viver? Isso é algum caralho de competição?, quem vai ser o último homem da Terra?! O que me matava era essa sequidão de chance. Agora já temos mais do que uma merda de poço com um gordo estragado.

– E agora?

– Agora a corda vai ser útil, Mitinga. Suncê conhece um barco à vela?

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